Aprovada após anos de debate, a Reforma Tributária brasileira está prestes a transformar profundamente o sistema de impostos do país. Mas o que isso significa para os hospitais, clínicas, planos de saúde e demais instituições do setor? Será que os custos operacionais vão aumentar? Neste artigo, vamos analisar os principais pontos da reforma, os impactos na saúde e como os gestores podem se preparar para o novo cenário.
O que é a Reforma Tributária?
A Reforma Tributária é uma reestruturação do sistema de arrecadação de impostos no Brasil. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC 45/2019), aprovada em 2023 e com aplicação progressiva a partir de 2026, visa simplificar os tributos e unificar impostos sobre consumo.
Os principais objetivos são:
- Reduzir a complexidade tributária
- Unificar cinco tributos em um único Imposto sobre Valor Agregado (IVA)
- Tornar o sistema mais justo, com cobrança no destino do consumo
- Melhorar a transparência e a previsibilidade fiscal
Quais Impostos Serão Substituídos?
Com a reforma, os seguintes tributos serão unificados:
- PIS
- Cofins
- ICMS
- ISS
- IPI
Eles serão substituídos por dois novos impostos:
- IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) – gerido por estados e municípios
- CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) – gerido pela União
Efeitos para o Setor de Saúde
A mudança no modelo de tributação preocupa o setor de saúde. Atualmente, muitos hospitais, clínicas e laboratórios contam com isenções ou regimes especiais de tributação, como no caso do PIS/Cofins. Com a reforma, esses benefícios podem ser revistos ou até eliminados.
Segundo matéria publicada no jornal Valor Econômico (2024), representantes de hospitais filantrópicos e privados estão em alerta quanto ao aumento de carga tributária, especialmente na aquisição de insumos e serviços terceirizados.
Impacto direto:
- Aumento de custo em até 10%, segundo projeções da Confederação das Santas Casas
- Perda de isenção para serviços hospitalares em regimes especiais
- Medicamentos e equipamentos hospitalares poderão ter elevação de carga tributária
Por Que Isso Preocupa?
O setor hospitalar já trabalha com margens apertadas. Um aumento nos custos pode impactar diretamente:
- A capacidade de investimento
- A qualidade dos serviços prestados
- O valor repassado aos planos de saúde e pacientes
Exemplo prático: Um hospital que hoje tem isenção de PIS/Cofins na compra de materiais pode passar a pagar uma alíquota única de 25% sobre consumo, como previsto no novo IVA.
Impacto nos Planos de Saúde
As operadoras de planos de saúde também serão impactadas. Caso os prestadores de serviço sofram aumento de custos, é natural que esses reajustes sejam repassados aos convênios, que por sua vez podem aumentar os preços das mensalidades para os clientes.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) alerta para possíveis reajustes acima da média, o que pode reduzir o número de beneficiários, especialmente nas faixas de menor renda.
E os Hospitais Filantrópicos?
As Santas Casas e hospitais filantrópicos compõem um dos pilares mais importantes da assistência à saúde no Brasil, especialmente no atendimento ao Sistema Único de Saúde (SUS). Essas instituições, muitas vezes centenárias, são responsáveis por mais de 50% de todos os atendimentos hospitalares do SUS em diversas regiões do país, sobretudo em municípios do interior, onde são a única estrutura de média e alta complexidade disponível à população.
Contudo, essas entidades já enfrentam, historicamente, graves dificuldades financeiras. Os repasses do SUS, que representam a maior parte da receita dessas instituições, frequentemente não cobrem os custos reais dos procedimentos. Isso gera um déficit operacional contínuo, levando muitos hospitais à beira da falência ou à dependência constante de doações, emendas parlamentares ou ajuda de prefeituras e estados.
Com a Reforma Tributária, o cenário tende a se agravar. A substituição de tributos e a possível extinção de regimes especiais de isenção ou redução de alíquotas, como ocorre hoje com o PIS/Cofins, podem resultar em um aumento significativo da carga tributária. Como essas instituições têm pouca ou nenhuma capacidade de repassar custos, esse impacto recai diretamente sobre a sua já fragilizada estrutura financeira.
Segundo estimativas da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB), o custo adicional com a reforma pode ultrapassar os R$ 3 bilhões anuais para o setor, caso os tratamentos diferenciados sejam revogados. Esse valor seria insustentável para muitas instituições, podendo levar ao fechamento de hospitais, demissão de profissionais e comprometimento da oferta de leitos para a população mais vulnerável.
A CMB já se posicionou formalmente perante o Congresso Nacional solicitando tratamento tributário diferenciado e a manutenção dos benefícios fiscais vigentes. A entidade argumenta que aplicar o princípio da isonomia de forma rígida, sem considerar as especificidades sociais e operacionais dos hospitais filantrópicos, pode comprometer seriamente o acesso à saúde pública de milhões de brasileiros. Trata-se, portanto, não apenas de uma questão fiscal, mas de uma urgência social e sanitária.
Além do risco de colapso financeiro, há o temor de que, com custos mais altos e menos recursos, os filantrópicos sejam obrigados a reduzir a quantidade de atendimentos, suspender serviços especializados ou fechar unidades de internação, especialmente em áreas remotas e carentes. O impacto seria imediato no tempo de espera para cirurgias, internações e exames, agravando ainda mais a já sobrecarregada rede pública de saúde.
A situação preocupa também o Ministério da Saúde, que reconhece o papel insubstituível dessas instituições. Segundo declarações de gestores públicos, a pasta trabalha em propostas para garantir que a reforma não prejudique o equilíbrio do SUS, mas ainda há indefinições sobre como isso será operacionalizado na prática.
Em suma, sem medidas compensatórias ou mecanismos de proteção, os hospitais filantrópicos estarão entre os mais vulneráveis aos efeitos da Reforma Tributária. Por isso, é essencial que gestores, parlamentares e a sociedade civil estejam atentos à importância estratégica dessas entidades, garantindo que a modernização do sistema tributário não aconteça às custas do desmonte da saúde pública solidária e universal.
Há Pontos Positivos?
Sim. A reforma promete maior transparência, simplicidade e previsibilidade, o que pode beneficiar o planejamento financeiro dos hospitais a longo prazo. Além disso:
- O modelo de crédito amplo permitirá que as instituições abatam impostos pagos em etapas anteriores, o que pode compensar parte dos custos.
- A eliminação da cumulatividade de impostos evita a chamada "tributação em cascata".
- Hospitais com boa gestão fiscal poderão se beneficiar da automatização do sistema tributário, com menor chance de erros ou autuações.
O Que os Gestores Podem Fazer?
Diante das possíveis mudanças provocadas pela Reforma Tributária, os gestores hospitalares precisam adotar uma postura proativa e estratégica para minimizar os impactos negativos. A antecipação e o planejamento são essenciais para garantir a sustentabilidade financeira das instituições de saúde nos próximos anos. Abaixo, seguem cinco frentes de ação indispensáveis:
1. Mapear os impactos financeiros com precisão
O primeiro passo é realizar um diagnóstico detalhado dos impactos que a nova alíquota do IVA (Imposto sobre Valor Agregado) poderá trazer. Isso envolve o levantamento de todos os contratos, compras recorrentes, serviços terceirizados, materiais médicos e hospitalares, e medicamentos.
Cada item deve ser avaliado com base na carga tributária atual x carga futura, considerando diferentes cenários. Por exemplo, a simples mudança de um regime cumulativo para um não cumulativo pode alterar profundamente a margem de operação de um hospital. Ferramentas de BI (Business Intelligence) e a colaboração com a equipe contábil serão fundamentais nessa análise.
Além disso, deve-se considerar os impactos indiretos, como o aumento dos preços por parte dos fornecedores que também serão afetados pela nova tributação.
2. Revisar contratos e cláusulas de reajuste
A maioria dos hospitais mantém contratos de longo prazo com fornecedores de insumos, empresas terceirizadas e prestadores de serviços, como lavanderias hospitalares, laboratórios externos, alimentação, segurança e tecnologia.
Com a entrada em vigor da Reforma Tributária, muitos desses parceiros também terão aumento de custos e poderão buscar reajustar seus valores contratuais. Antecipar essa movimentação é essencial.
Os gestores devem, com apoio jurídico, revisar as cláusulas de reajuste, renegociar prazos e, quando possível, readequar os contratos, de modo a proteger o equilíbrio econômico-financeiro da instituição. Vale também considerar cláusulas de revisão extraordinária, baseadas em alterações na legislação.
3. Reavaliar o regime tributário atual da instituição
Muitas instituições de saúde estão hoje enquadradas no lucro presumido ou, no caso de entidades filantrópicas, possuem isenções específicas. Com a Reforma Tributária, esses regimes podem ser alterados ou extintos, exigindo uma revisão completa da estrutura fiscal da instituição.
O mais indicado é contar com consultorias especializadas em tributação para a área da saúde, que compreendam tanto os regimes atuais quanto o novo modelo proposto. Essa reavaliação poderá indicar, por exemplo, a necessidade de migrar para um regime mais vantajoso ou adotar novas práticas contábeis para aproveitar créditos tributários.
Também é importante monitorar as regulamentações futuras que irão detalhar os critérios de transição e definir se haverá exceções ou benefícios setoriais específicos para hospitais.
4. Investir em contabilidade estratégica e custos hospitalares
Em um ambiente tributário mais complexo e dinâmico, o papel da contabilidade deixa de ser apenas o de registrar operações passadas, e passa a ser um instrumento essencial de planejamento e apoio à tomada de decisão.
Contar com um contador ou equipe de controladoria com especialização em custos hospitalares permitirá à gestão simular cenários, calcular impactos tributários por unidade de atendimento e identificar pontos de ineficiência financeira.
Além disso, é importante desenvolver indicadores-chave de desempenho financeiro e operacional (KPIs), que permitam acompanhar o efeito das mudanças tributárias em tempo real e tomar decisões mais assertivas, como revisão de preços, ajustes de contratos ou reestruturação de serviços.
Hospitais que adotam sistemas de custeio por absorção, ABC ou UEPs, por exemplo, terão vantagem competitiva para adaptar-se rapidamente a qualquer cenário.
5. Engajar-se em associações e movimentos setoriais
Os hospitais, especialmente os de pequeno e médio porte, não podem enfrentar sozinhos os desafios que a Reforma Tributária traz. A participação ativa em associações de classe, federações e conselhos regionais e nacionais de saúde é fundamental.
Essas entidades têm representatividade política para atuar junto ao Congresso Nacional, ao Governo Federal e aos tribunais, na defesa de regimes tributários diferenciados ou compensações para o setor.
A Federação Brasileira de Hospitais (FBH), a CMB (Confederação das Santas Casas) e os conselhos regionais têm promovido debates, audiências públicas e estudos de impacto que ajudam a pressionar por medidas mitigadoras.
Além disso, participar dessas redes fortalece o intercâmbio de experiências, acesso a conteúdos técnicos, treinamentos e informações estratégicas sobre a regulamentação da reforma e seus desdobramentos.
Exemplo: Rede D'Or
A Rede D'Or São Luiz, maior rede hospitalar privada do Brasil, declarou em comunicado ao mercado que monitora os impactos da reforma e mantém diálogo com o setor público para evitar desequilíbrios no setor.
Conclusão
A Reforma Tributária brasileira é uma conquista histórica, mas traz desafios significativos para a saúde. O aumento potencial de carga tributária pode comprometer a sustentabilidade de hospitais, clínicas e operadoras de planos. No entanto, com planejamento, revisão de processos e gestão estratégica de custos, é possível mitigar os efeitos negativos.
Para os gestores, o conhecimento será a melhor ferramenta nos próximos anos. A reforma está vindo – e ignorá-la pode custar muito caro.